"Para as colegas que desejam ajudar o filho a nascer pelo parto normal, saibam que não existe dor, mas sim, uma força que o corpo faz para trazer a criança ao mundo e que a calma e a respiração são o segredo de um bom parto." (...) "O corpo faz tudo sozinho, a gente só dá uma forcinha."
Juliana Feliz, jornalista, mãe de 3 meninas, sendo duas parto normal e uma natural.
Ela repete que o corpo sabe o que fazer, que não há dor e que é só uma questão de manter a calma. E ainda, que após o nascimento não sentimos mais nada, só uma grande emoção de ouvir a criança chorar e amamentar.
Foi por causa de relatos desse tipo, que generalizam a própria experiência, tipo "é assim que é o parto normal", que meu parto vaginal foi tão traumático. Eu li tantos relatos de partos normais lindos e cesáreas terriveis, que estava certa de que eu queria parto normal, natural e sem nenhuma interferência, pois, afinal de contas "o corpo sabe o que faz", não é?! Ainda tive a "sorte" do meu filho nascer no Canadá, onde a regra é parto normal a (quase) qualquer custo.
A verdade é que cada parto é um e não há como generalizar. Há situações em que cesárea é a melhor alternativa, sim. E a culpa não é do médico que quer maior comodidade pra vida dele. Sei que isso lamentavelmente acontece, que existem cesáreas desnecessárias e médicos folgados, mas não dá pra generalizar dizendo que parto normal é o certo e crucificar a cesárea. A ponto, inclusive, de algumas mulheres se sentirem mal por terem feito uma cesárea! Ou outras se sentirem superiores por terem tido parto normal!
Parir é uma dádiva! É um divisor de águas, uma experiência transformadora, não importa a forma como foi o parto. Aqui vou contar a MINHA experiência de parir por via vaginal meu primeiro filho. Antecipo que não foi nada como eu tinha imaginado.
Desde que engravidei comecei a ler muito sobre esse universo de gravidez, maternidade, educação infantil... tudo lindo no papel! Li um livro inteiro sobre parto natural e estava decidida que queria meu parto natural e de cócoras, para ter maior abertura do canal vaginal e ajuda da gravidade na hora da expulsão. Li coisas horriveis sobre qualquer intervenção médica nesse processo divino e natural que é parir!
Optei por parteira (midwife) em vez de obstetra. Decisão acertada, pois os médicos aqui no Canadá são extremamente distantes do paciente e só com a midwife tive aquela sensação de acolhimento, que tinha com meus médicos no Brasil. Elas são atenciosas e interessadas na nossa vida.
Agora senta que lá vem a história...
Eu completaria 38 semanas de gestação num sábado. Na quarta-feira anterior, à 1:45 am (madrugada), levantei-me para fazer xixi, como todas as noites nas últimas semanas de gestação. Acontece que desta vez, percebi que havia escorrido umas gotinhas de água (?) antes que eu tivesse chegado ao banheiro. Coisa pouca, gotas: less than a tablespoon, como descrevi pra midwife. Mesmo assim, achei estranho e anotei a hora ao voltar pro quarto. Imaginei que minha bolsa tivesse rompido e iria esperar pelo famoso aguaceiro que dizem que é.
Passei o dia todo sentada num evento de trabalho. Nada de aguaceiro. Na quinta-feira cedo, porém, acordei cismada com aquelas gotinhas. Ao me levantar, senti novamente descer mais gotinhas e, então, liguei para a emergência da midwife dizendo que suspeitava de que minha bolsa tinha rompido.
Frustração #1: Você VAI SABER quando estiver em trabalho de parto ou quando a bolsa romper, não se preocupe!
A midwife me pediu para ir até o consultório para exame. Tomei banho, troquei de calcinha e cheguei lá sequinha para o exame. Ela pegou um cotonete de cabo comprido e pontinha alaranjada e passou no colo de meu útero, para detectar líquido amniótico: NADA. Ela disse, então, que poderia ser que durante a noite meu corpo esquentava e ao me levantar parte do tampão mucoso que havia se liquefeito à noite, escorria. Eu pedi para levar um cotonete desses pra casa, pra eu checar caso acontecesse novamente.
Minha irmã é médica (cardiopediatra) no Brasil. Quando contei pra ela, por whatsapp, o que tinha acontecido ela respondeu: "isso é bolsa rota, sim! Vá para um hospital!". Como as coisas aqui funcionam diferente do Brasil, eu precisava da indicação da midwife pra dar entrada no hospital e, pra isso, precisava de uma prova de que a bolsa tinha rompido.
Passei o dia esperando uma "gotona" pra não desperdiçar o palitinho com o indicador. Naquela noite, às 21:45, estava deitada, senti novamente a gotinha e coloquei o palitinho imediatamente. Resultado: pontinha preta = líquido amniótico. Bingo! Minha bolsa estava rompida (há quase 48 horas). Ligamos para a midwife que disse: já que acabou de ser detectado, vamos assumir que acabou de acontecer e contar 24h a partir daqui para entrar com qualquer intervenção.
Frustração #2: Quando a bolsa rompe, é um aguaceiro danado! Não tem dúvida!
Eu insisti que tinha certeza de que não havia acabado de acontecer, pois foi a mesma sensação da quarta-feira e que gostaria de ir ao hospital o quanto antes. A bolsa rompida expõe o bebê a risco de infecções eu estava com medo. Marcamos então no dia seguinte, 8 da manhã, no Guelph General Hospital.
Fomos caminhando ao hospital |
Mal consegui dormir aquela noite de tanta ansiedade. Acordei às 6 am, tomei um banho demorado, fiz hidratação no cabelo, depilei. Minha mãe, que tinha chegado naquela semana, bateu na porta do banheiro preocupada com minha demora e eu estava lá, calma e feliz, me embelezando para receber meu filho e ele me achar bonita! Saí do banho e não quis tomar café da manhã, pois não era bom parir de estômago cheio. Pedi pra minha mãe fazer arroz maria isabel pro almoço, quando eu voltasse com o bebê. Pensa numa pessoa otimista!!!
Sexta-feira, 8 am: Dei entrada no hospital, mas só consegui leito na triagem às 10h. Depois que tive meu leito, fiquei deitada lá por um tempinho e comecei a sentir umas contrações leves e espaçadas. O Carlos e eu comemorávamos cada uma como quem comemora um gol da seleção na Copa!
Como minha bolsa já estava rompida há muito tempo, chegamos* à conclusão de que o parto deveria ser induzido, já que eu não entrava em trabalho de parto naturalmente. Nesse caso, o cuidado principal passa a ser da obstetra e não mais das midwifes. As midwifes assumem novamente quando o bebê nascer.
*eu disse "chegamos" porque aqui no Canadá, o paciente é quem decide tudo. O cuidador (médico ou midwife) indica as opções que você tem, prós e contra, e você escolhe. No meu caso, as opções apresentadas foram: induzir o parto ou esperar mais 24 horas pra ver se você entra em trabalho de parto. Não se mencionou a opção cesárea.
A médica, então, veio me ver e se apresentar. Eu perguntei pra ela se eu poderia ter o parto na vertical, para usar a gravidade como aliada na hora da expulsão do bebê. Ela fez uma cara estranha e perguntou se eu me referia ao "labor" ou "delivery". Eu confirmei: "aos dois!", toda natureba... Ela falou "tudo bem, mas na hora que eu falar pra você deitar, é pra você deitar!". E saiu.
Na sala de espera do hospital |
12h: Fui pra sala de espera, comi um pedaço de bolo de fubá que eu tinha feito, mas só consegui quarto às 15h. A essa altura eu já estava exausta, faminta e com enxaqueca. As enfermeiras estavam ocupadas e tivemos que esperar mais 2 horas no quarto. Durante esse tempo, o Carlos e eu ficamos dando voltas pelos corredores do hospital, ritmo de caminhada acelerado, na tentativa de ajudar o tal processo "natural"... Viramos piada das enfermeiras e faxineiras que nos viam passar quase correndo a cada 5 minutos. O trabalho de parto que aparentemente havia começado por volta das 10:30 da manhã, tinha desaparecido completamente.
Frustração #3: Seu corpo saberá o que fazer!
17h: A enfermeira chegou, me "amarrou" na cama, conectada a uma máquina que monitorava as minhas contrações e os batimentos cardíacos do bebê. Hora de, finalmente, iniciar o soro com ocitocina, hormônio para induzir o tão esperado trabalho de parto!
Ela pegou o meu braço e disse "vc tem a veia alta, boa de pegar!". Primeira tentativa... Ops! Ela perdeu a veia "bem na hora que já estava quase lá"! Segunda e terceira tentativas... mesma coisa! Eu já frustrada de ver meu braço furado em vários lugares - e dolorido! Isso porque a minha veia era boa, ne?!
Frustração #4: Você tem a veia boa, fácil de pegar!
A coitada ficou tão mal que resolveu chamar outra enfermeira para aplicar, pois ela tinha desistido de me furar. A outra infermeira veio, conseguiu de primeira, graças a Deus!, e colocou o soro. Nessa hora eu já tinha a sensação que ficaria conectada pra sempre ali naquele soro e senti pena das pessoas que vivem em hospitais tomando remédio na veia. Pensei no Gus, meu amigo querido, que passou o fim de sua vida curta sofrendo horrores!
Comecei a chorar, achando que ia morrer. A midwife, que apesar de não ser mais a responsável por mim naquele momento acompanhou tudo e foi maravilhosa, olhou bem pra mim e disse: "Lia, eu te prometo que você não vai morrer hoje! 100% de certeza que você não vai morrer hoje." Parece besteira, mas fez uma puta diferença pra mim.
18h: A médica apareceu, juntamente com um estagiário, e os dois mediram minha dilatação: 3 cm. As contrações começaram, doloridas já. Entre uma e outra realmente havia uma folga de bem estar, até a outra contração. Sentia uma pressão horrorosa na lombar, não havia posição agradável, eu não podia andar e a cada mudança de posição era uma luta para encaixar os sensores novamente. Estava sem graça já, pois eu mudava de posição, a enfermeira ficava um bom tempo arrumando os sensores novamente no lugar e quando o sinal finalmente era bom, eu já queria mudar de novo. Não havia posição boa. As contrações começaram a ficar muito doloridas e demoradas - quase um minuto que parecia uma hora! Era muito difícil até continuar respirando, mesmo que essa fosse a instrução.
Frustração #5: Não há dor, só amor!
Na hora da contração ela me mandava abraçar o Carlos, de quem eu queria distância naquela hora. Eu olhava pra minha barriga enorme, queria o meu bebê fora dela, mas não via um jeito pacífico de se fazer isso. Disse para o Carlos que eu não queria mais engravidar, que o próximo filho seria adoção. Estava desesperada, sem ver um caminho bom para meu futuro próximo naquele hospital.
~3 am: Depois de 10 horas de contração, 10 horas de trabalho de parto, a médica veio checar a dilatação. Ela e o estagiário novamente. Ele primeiro, ela depois. Resultado: 3 cm! Os mesmos 3 cm de antes! Disseram que eu estava tendo contrações ineficientes. Eram doloridas como as outras, mas não provocavam a abertura do útero. Excelente, não?!
Frustração #6: Seu corpo saberá o que fazer!
Nessa hora, porém, eu estava entregue. Mais de 10 horas de trabalho de parto ineficiente, embora, extremamente doloroso tinham se passado e eu estava apenas com 3 cm de dilatação. A midwife me apoiou na decisão, disse que se existia algum caso para indicação de epidural, o caso era aquele meu. Havia uma fila de espera, mas eu tive prioridade por ser um parto induzido.
Mito #7: Epidural é uma intervenção maligna, de mulher fresca.
4 am: O anestesista foi como um anjo. Lembro de flashes da presença dele, pois estava anestesiada de dor. Só sei que ele parecia um anjo. Eu deitei de lado, totalmente entregue e relaxei! Ele saiu, a midwife me disse para dormir um pouco. Eu continuava a sentir dor, claro que nada comparado ao terror pelo qual havia passado especialmente nas últimas horas (principalmente depois que a médica arranhou meu útero), mas sentia as contrações. Impossível dormir.
Chamei a enfermeira e disse que ainda estava sentindo dor, que eu achava que a dose não tinha sido suficiente. Ela disse que fazia menos de 15 minutos que eu havia tomado a epidural e que levava um tempo para fazer efeito. Acontece que as dores só aumentavam e pedi, por favor, pra ela me dar um reforço. Ela disse que nunca tinha visto o médico dar reforço tão próximo da aplicação, mas que iria falar com ele.
Eu precisava ir ao banheiro e ela disse que era impossível, que eu não podia mais me levantar. Colocou um papel absorvente do lado da minha bunda e disse que eu podia fazer ali mesmo, deitada. Olha a situação!!! O Carlos então assumiu o posto, disse que ficaria ali comigo e ela saiu pra me dar mais privacidade e chamar a médica para ver se podia aumentar minha dose de anestesia.
Assim que ela saiu, e eu tentei relaxar. Nesse momento, senti o Davi saindo! Falei pro Carlos: está nascendo, corre e chama a enfermeira! É o Davi! É o Davi! Tive que fazer força de fechar a vagina durante as contrações, pois a minha impressão era que o Davi ia sair aquela hora.
A enfermeira voltou com a médica e o estagiário, de novo. Ele colocou a mão em mim, ficou um tempo lá, tirou sem me falar nada. Como das outras vezes. Veio, então, a médica. Ela encostou o dedo em mim e puxou imediatamente a mão de volta, dizendo: "Opa! Temos uma cabeça aqui!Está nascendo." O Carlos, coitado, olhou pra mim sorrindo querendo comemorar e eu disse, brava: "Para! Nós só vamos comemorar quando esse menino estiver nos nossos braços!".
Ás 5 horas da manhã de sábado, quase 24 horas depois da nossa entrada no hospital e de uma noite toda de dores terríveis, fizeram um semicírculo ao redor da minha vagina, todos olhando (duas enfermeiras, médica, estagiário, midwife e Carlos). A médica me pediu para colocar a mão para sentir a cabeça que já tinha coroado, mas eu não quis. Ela insistiu e eu acabei colocando a mão só porque estava todo mundo me olhando com cara de "como assim não quer sentir esse momento mágico?!"...
A médica, então, começou a mandar: Push push push STOP! Push push push STOP! little push little push STOP! E assim o meu filho foi saindo. Eu empurrava com todo meu útero, corpo e coração aquela criança até que às 5:21 am, ele escorregou todo e foi colocado imediatamente no meu colo, todo ensebadinho. Saiu fazendo xixi e assim que foi colocado no meu colo, fez cocô. O mecônio, um cocô escuro e preguento.
A dor dessa hora pra mim, não foi a da contração, foi uma sensação de queimar, de rasgar - o que de fato aconteceu em 3 lugares diferentes do meu períneo. A hora de passar a cabeça foi difícil, principalmente na parte do STOP. Depois tive uma folguinha de segundos, aí a hora de passar o ombro foi super dolorida também. Depois senti o resto do corpinho dele escorregar. Essa sensação sim, foi uma delícia!
O estagiário e a médica começaram a me costurar - sem anestesia! - enquanto eu tentava amamentar o meu filho com soro no braço e destreza de mãe de primeira viagem.
Frustração #8: "após o nascimento não sentimos mais nada, só uma grande emoção de ouvir a criança chorar e amamentar." >>> Mas isso é assunto pra um outro post!
O Davi nasceu dia 14 de dezembro, 5:21 am, com 3,190 kg e 49 cm. Um menino lindo e eu sou completamente apaixonada por ele!
Eu, no momento em que virei mãe |