Fui pra cama por volta das 9 pm me sentindo muito cansada (normal para uma grávida em fim de gestação pesando quase 90 quilos). Comecei a sentir as contrações doloridas, que já havia sentido outras noites. Fiquei ali, presente, sentindo cada contração que vinha levemente dolorida e espaçada de uns 10/15 minutos da outra.
Todos da casa dormiam e eu, já percebendo que aquela não seria uma noite comum, saí do quarto por volta das 11 pm e vim pra sala sentir com toda minha atenção e consciência o que estava acontecendo com o meu corpo. As contrações estavam mais frequentes e mais doloridas. Muito mais doloridas.
Fiquei no escuro da sala, olhando o rio congelado pela janela, na cadeira de balanço, tentando não resistir à dor, lembrando de respirar e repetindo mentalmente o mantra: Enjoy the pause! (Aproveite a pausa)*
*Aprendi essa lição maravilhosa no livro Mindful birthing. A dor das contrações de trabalho de parto é intensa, mas de mesma intensidade é o relaxamento entre as contrações. É uma coisa única, um efeito quase que anestésico do corpo que, se não atentas, não percebemos. Eu, repetindo esse mantra, pude constatar o que o livro conta: não há relaxamento mais profundo que o que acontece na pausa entre contrações. E constatava isso admirada com a perfeição da natureza. É o corpo se recuperando momentaneamente para a transformação brutal ocorrendo na forma de contrações extremamente doloridas. É a calmaria em meio à tempestade, ambas se alternando a todo momento num ciclo dual, natural, sagrado. Como a natureza! O auge de um é o início do outro. E assim, movimento e repouso, dor e relaxamento e, hoje eu entendo assim, Yin e Yang, numa dança física visceral dentro de mim.
Foi assim das 11 pm até umas 4 am. Eu, sozinha, perambulando pela casa silenciosa, escura e fria, focando na respiração e nas sensações do meu corpo, conversando com Bento e com Deus, chorando, entrando debaixo do chuveiro quente sempre que achava que não estava aguentando mais de dor (acho que tomei uns 3 banhos quentes em casa, naquela noite), até que não aguentei mais a solidão.
Entrei no quarto do Davi, a procura do colo da minha mãe. Era ela quem eu queria naquele momento. E, menina de sorte que sou, ela estava lá! Pronta! No meio da madrugada. Ela, Dani e Davi. Tentei deitar na cama, mas não conseguia. A dor das contrações me colocavam em movimento, de pé, aos prantos a essa hora. Minha mãe ordenou então que chamássemos a parteira, que fossemos pro hospital, não havia mais condições de ficar em casa, a chegada do Bento estava muito próxima, ela sabia.
Acordamos o Carlos que foi fazendo as coisas burocráticas: ligar pra midwife, chamar o taxi, pegar as coisas. E eu e minha mãe andando pela casa e sentindo cada contração, já extremamente próximas umas das outras, aos prantos (eu). Naquela hora, eu sabia que eu, mamãe e Dani estávamos todas em trabalho de parto. Todas conectadas com o sagrado feminino que nos une, unindo nossas forças numa corrente invisível, porém muito forte.
O taxi chegou e chegamos ao hospital por volta das 5:30 am. Tudo escuro, hospital vazio e eu me contorcendo de dor e implorando pra todo mundo que eu via:
- Help me! Help me! Help me!!!
Fui pra sala de triagem para checar a dilatação e mal consegui deitar na maca, meu corpo queria a posição horizontal e eu era, naquele momento, um bicho. Eu não pensava, não analisava, só sentia e observava, e fazia o que ele, meu corpo, mandava.
4 cm de dilatação às 5:30 am. Excelente, vamos pro quarto, Bento está a caminho.
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- Good for you!!! (Bom pra vc) - eu queria mata-la. "BOM PRA QUEM, FILADAPUTA?!", pensava.
A essa hora, eu já alternava entre momentos de consciência e desespero. Desesperada com a dor, pedia que me aplicassem uma anestesia GERAL! hahaha Todos me olhavam, mas ninguém fazia nada. Não havia anestesista disponível e eu precisaria, me disseram, de receber um litro de soro na veia antes da epidural. Abri meus braços oferecendo as veias e implorando, "coloquem esse soro já!". Tentaram, é verdade, mas ninguém conseguiu acertar a veia.
Eu agachada no chão do quarto do hospital, com os braços esticados na cama, as duas parteiras tentando achar minha veia e nada. Furavam e não dava certo. Me mandaram pra debaixo do chuveiro, onde fiquei a maior parte do tempo, chorando, tentando lembrar de tudo que tinha lido: RESPIRA, APROVEITE A PAUSA, e PELO AMOR DE DEUS, CADE O ANESTESISTA DESSA PORRA?!?!?!?
Sei que mediram a dilatação novamente às 6:30 am e eu já estava com 7 cm de dilatação. O negócio era bruto, intenso e rápido. Todos sabiam. (eu só sabia a parte do bruto e intenso. Rápido é um conceito muito relativo nessa hora. Pra mim, aquilo estava durando uma eternidade e não teria fim).
De volta pro chuveiro, balançava, chorava, rezava e tentava respirar e não resistir àquele fenômeno milagroso por que meu corpo passava. Depois de constatarem que já estava muito dilatado, me disseram:
- Lia, vamos furar a bolsa pra saber se está tudo bem. Se tiver algum problema no liquido, vamos chamar o pediatra, ok?
Eu só consegui dizer:
- Depois vai me aplicar a anestesia? Por favor??
Furaram a bolsa, liquido amniótico lindo, transparente, quentinho, perfeito. Acharam alguém que conseguiu aplicar o soro em mim, isso já eram umas 7:30 am. Saí do chuveiro para receber o soro e fui para o quarto. A moça furando minha veia, eu agachada no chão, braços esticados na maca enquanto ela colocava o soro, senti que era hora da expulsão.
Comecei a fazer força de expulsar, mesmo sem querer. Meu corpo queria. A parteira perguntou:
- Quer expulsar o bebê?
Eu:
- YEEEEEES. - já expulsando.
Nessa hora, o que mais me impressionou foi a involuntariedade do meu corpo. Eu não quis expulsar o bebê, meu corpo quis. E não havia nada que pudesse impedir aquele processo. Meu corpo foi dono de si e agiu como queria (guiado por quem???).
Eu ainda estava de cócoras no chão e, receosos de que o bebê nasceria no chão, me passaram pra maca. Fiquei ajoelhada expulsando, gritando, chorando, rezando e tentando lembrar de respirar. Foi uma experiência animalesca, brutal, avassaladora, transformadora.
O Bento veio. Não assim, delicadamente, veio em partes. Primeiro a cabeça. Senti que todos os ossos do meu corpo estavam se abrindo e que me quebraria ao meio ali. Gritei, um grito agudo, de desespero. A parteira, calmamente, disse:
- Pode gritar, querida, mas tente gritar grosso. Ajuda mais.
Nem deu tempo e meu corpo já mandou mais uma expulsão, o ombro e resto do corpinho do Bento deslizaram pra maca. E, agora sim, ele apareceu inteirinho na minha frente. Braços e pernas abertos como quem caiu do céu, roxinho. Chorou. Eu o peguei imediatamente! E as imagens a seguir falam por si. (Aviso: cenas fortes!)
Bento nasceu no dia 20 de Janeiro de 2016, às 8:18 am, com 4.05 kg e 52.5 cm. (~9 horas de trabalho de parto, 45 minutos de expulsão, parto normal, sem intervenção)
Mas ele não veio sozinho. Depois de tê-lo parido, deitei na maca com ele em meus braços, dolorida da cintura pra baixo. A parteira mais nova olhou alguma coisa ali e disse:
- Opa! O que é isso?!
A parteira mais velha veio ver.
- Ah! É o útero dela. Temos que colocar pra dentro de novo. - :o
Uma pausa aqui para contar uma coisa. O trabalho de campo do meu doutorado foi em uma fazenda leiteira. Certo dia cheguei e encontrei uma vaca estirada no chão, morta, no meio do caminho. Perguntei pro fazendeiro o que tinha acontecido com a pobre vaca e ele respondeu:
- Ela pariu no meio da noite e o útero dela saiu. Então ela morreu.
Fiquei assustada com a constatação de que meu útero tinha saído com o Bento e perguntei:
- E agora?! Vou morrer!
As parteiras disseram que não, que só teriam que colocar o útero pra dentro. Assim o fizeram. Também costuraram o que havia aberto naquele processo todo e, aí sim, pude curtir o meu bebezão.
Ainda fiquei dolorida por alguns dias, mas nada perto da dor de antes.
Q texto incrível! Vc é uma escritora excelente, Lia!!! Me emocionei de novo com o nascimento do Bento. Suas palavras me levaram de volta àqueles momentos incríveis! Posso viver cem anos, posso ter Alzheimer e, mesmo assim, nunca me esquecerei desse dia! Te amo, Amore!
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